Se você pensa que terror de qualidade só se faz em Hollywood, prepare-se para um tapa de luva com espinhos na cara. O Brasil tem uma tradição de horror que vai muito além do que a maioria dos espectadores conhece, escondida nas sombras de um mercado que sempre preferiu importar sustos a valorizar os pesadelos tupiniquins. Enquanto críticos de cinema ficam babando pelas produções estrangeiras, temos aqui verdadeiras pérolas obscuras que continuam enterradas em um cemitério de VHS e DVDs piratas.
1. À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964)
Não poderíamos começar sem reverenciar o marco zero do terror nacional. Este foi o primeiro filme de José Mojica Marins como o icônico Zé do Caixão, um personagem tão brasileiro quanto o atraso no transporte público. Em plena ditadura militar, Mojica criou um anti-herói nietzschiano em um país onde a religiosidade era (e ainda é) um pilar social. Zé do Caixão era o coveiro blasfemo que cuspia na cara da moralidade católica, um verdadeiro “fuck you” para os bons costumes da época.
A genialidade de Mojica está em transformar a precariedade técnica em estética. Com iluminação amadora e efeitos especiais improvisados, ele criou uma atmosfera de pesadelo genuíno que muitos filmes com orçamentos milionários jamais conseguiram. Seria cômico se não fosse tão perturbador. Ou seria perturbador se não fosse tão cômico?
2. Ritual dos Sádicos (1970)
Também conhecido como O Despertar da Besta, este é o Mojica proibido, o filme tão polêmico que enfrentou dificuldades com a censura, sendo liberado apenas em 1977. Enquanto os gringos aplaudiam Laranja Mecânica, nosso filme sobre violência, drogas e perversão sexual estava preso nas gavetas da burocracia brasileira—talvez porque tocar nas feridas sociais do Brasil da ditadura fosse o verdadeiro tabu.
O filme mistura experimentação visual alucinante com uma crítica social ácida, tudo isso embalado em uma narrativa fragmentada que parece o resultado de uma bad trip coletiva. Mojica fez um filme sobre o conservadorismo hipócrita brasileiro décadas antes do termo “lacração” existir. É um espelho distorcido do Brasil que muitos preferem não olhar.
3. A Praga (1980)
José Mojica não foi o único a navegar pelas águas turvas do terror nacional. “A Praga” de Júlio Bressane conta a história de uma epidemia misteriosa que transforma as pessoas em monstros violentos parece clichê hoje, mas na época era uma metáfora poderosa para o clima de paranoia que ainda pairava sobre o Brasil durante a abertura política.
Com uma fotografia amarelada que mais parece uma documentação de arquivo policial, o filme tem aquele charme analógico de VHS surrado que hoje é vendido como “aesthetic” no TikTok. Irônico como o tempo transforma precariedade em estilo, não?
4. Nocturnu (1998)
Os anos 90 foram a década perdida para o terror nacional. Enquanto Hollywood revivia o slasher com Pânico, nós tentávamos produzir qualquer coisa com os cacos do fim da Embrafilme. Nocturnu é o exemplo perfeito disso—um filme experimental que provavelmente foi visto por menos pessoas do que cabem em um Fusca.
A narrativa fragmentada sobre O inferno na Terra, deuses diabólicos onde Lúcifer emerge das entranhas de um navio em busca de carne humana e sangue como alimento e caçadores tentam desesperadamente eliminar as bestas criaturas, foi filmada em 16mm; Com uma estética tão lo-fi que faria os hipsters de hoje terem orgasmos cinematográficos. O diretor Dennison Ramalho criou um pesadelo febril com influências de David Lynch e Dario Argento, mas com orçamento para comprar no máximo um X-salada na lanchonete da esquina.
5. Zombio (1999)
Se você acha que A Noite dos Mortos-Vivos é o marco zero dos filmes de zumbi, precisa conhecer esta pérola obscura do final dos anos 90. Filme do cineasta Petter Baiestorf em Santa Catarina, Zombio é o equivalente cinematográfico a um show de punk rock underground—barulhento, caótico e com um dedo médio erguido para as convenções.
Baiestorf criou uma estética que ele mesmo chamou de “Kanibaru Sinema”, uma mistura de gore extremo, humor escatológico e crítica social disfarçada de trash. Zombio tem mais tripas, sangue falso e nudez gratuita do que sensatez, mas essa é exatamente sua proposta. É cinema de guerrilha no seu estado mais puro e sujo—e ainda teve direito a uma sequência ainda mais foda.
6. Amor Só de Mãe (2003)
Quando pensamos em curtas-metragens de terror, raramente nos vem à mente produções nacionais. Amor Só de Mãe, dirigido por Dennison Ramalho, é a prova de que quinze minutos podem ser mais perturbadores que muitos longas-metragens. Em uma aldeia de pescadores, acontecimentos macabros se desenrolam em uma noite de satanismo, morte e orações à Nossa Senhora da Cabeça.
A genialidade do curta está na maneira como ele mescla o horror corporal com elementos do sincretismo religioso brasileiro. É um filme que entende que o verdadeiro horror brasileiro não está nos monstros estrangeiros, mas nos nossos próprios demônios culturais.
7. Porto dos Mortos (2010)
Filmes de zumbi são como pagode: todo mundo diz que odeia, mas continua consumindo sem parar. Porto dos Mortos pegou a saturada temática dos mortos-vivos e deu um tratamento visual que faria George Romero aplaudir de pé (se ele não estivesse, bem, morto). Dirigido por Davi de Oliveira Pinheiro, o filme cria uma estética pós-apocalíptica em Porto Alegre que transforma a capital gaúcha em um cenário digno de Mad Max, só que com muito mais chimarrão e cadáveres.
O filme tem uma pegada de western sombrio e conta a história de um caçador de recompensas em um mundo onde os mortos retornam. A fotografia em tons de sépia e azul cria uma atmosfera única que compensa o orçamento limitado. É aquele tipo de filme que faz você pensar: “como isso foi feito no Brasil?”
8. Matadouro (2012)
Para quem acha que filme independente brasileiro é sinônimo de drama social sobre as mazelas da periferia, Matadouro é um tapa na cara. Dirigido por Carlos Antico Júnior, o filme é uma experiência visceral sobre um grupo de jovens que encaram o terror em um matadouro abandonado.
O que torna Matadouro especial é como ele consegue criar tensão com recursos mínimos. Não espere efeitos digitais impressionantes ou monstros elaborados—o horror aqui vem do não visto, do sugerido, do jogo de sombras que transforma corredores vazios em pesadelos claustrofóbicos.
9. Mar Negro (2013)
Rodrigo Aragão é possivelmente o nome mais importante do terror brasileiro contemporâneo, e Mar Negro é sua obra-prima. Ambientado em uma vila de pescadores no Espírito Santo, o filme mistura terror ecológico, folclore brasileiro e body horror de uma maneira que faria Cronenberg ter pesadelos tropicais.
A premissa é simples: uma substância misteriosa contamina o mar e transforma pescadores em monstros grotescos. Por trás dessa história B aparentemente simples, há uma poderosa metáfora sobre exploração ambiental e o abandono das comunidades tradicionais. Os efeitos práticos são impressionantes, especialmente considerando o orçamento limitado. Aragão conseguiu criar criaturas que parecem saídas de um pesadelo lovecraftiano, mas com um sabor distintamente brasileiro.
10. Desalmados (2020)
Fechando nossa lista, Desalmados mostra que o cinema de terror brasileiro continua respirando (ainda que por aparelhos). Dirigido por Armando Fonseca e Raphael Borghi, o filme é um festival de sangue, tripas e cabeças explodindo que não pede desculpas por sua violência gráfica.
A trama sobre zumbis em um futuro distópico pode parecer batida, mas o filme se destaca pela execução técnica impressionante e pelo tom que mistura ação frenética com humor negro. Desalmados parece o resultado de um casamento improvável entre Zé do Caixão e Mad Max: Estrada da Fúria, com um toque de videogame dos anos 90. É o tipo de curta que você assiste com um sorriso sádico no rosto, apreciando cada morte criativa e absurda.
O cinema de terror nacional sempre existiu nas margens, nos becos escuros e porões úmidos da nossa cinematografia. Enquanto filmes como “Cidade de Deus” e “Central do Brasil” recebiam aplausos internacionais, nossas produções de horror lutavam para existir com migalhas orçamentárias e distribuição quase inexistente.
O mais assustador nessa história toda não são os monstros ou assassinos desses filmes, mas o descaso sistemático com que tratamos nosso próprio cinema de gênero. Enquanto pagamos fortunas para nos assustarmos com demônios americanos dublados, temos aqui pesadelos genuinamente brasileiros que continuam ignorados, como fantasmas que ninguém quer ver.
Talvez o verdadeiro filme de terror seja a trajetória de quem tenta fazer cinema de horror no Brasil—uma história de resistência, precariedade e paixão que sobrevive apesar de tudo. Como diria Zé do Caixão: “O que é a vida senão a procura constante do desconhecido?” E o que é mais desconhecido para o brasileiro médio do que seu próprio cinema de terror?