“A Mosca” de Cronenberg: quando a ciência vai longe demais e o corpo responde “segura meu vômito”

Introdução: o sucesso perturbador

Diferente de “The Thing”, que ficou guardado em prateleiras de VHS antes de ser visto como clássico, “A Mosca” de 1986 foi aclamada na hora pela crítica e pelo público. Parece que a América estava mais pronta para ver um homem cuspir enzimas na comida do que para um cachorro se tornar uma criatura tentacular. Cronenberg conseguiu o que Carpenter não pôde: embrulhar o estômago do espectador e, simultaneamente, encher os bolsos dos estúdios. Irônico que um filme sobre desintegração física tenha sido um sucesso tão sólido.

O timing, como na teleportação desastrosa de Brundle, foi crucial. Durante a crise da AIDS, o corpo se tornou um campo de batalha. Cronenberg nos ofereceu uma reflexão intensa sobre a traição do corpo, que não podia ser ignorada. Em um tempo focado em fitness e corpo ideal, ele nos mostrou a revolta do corpo. Isso nos lembra que, no fundo, somos só carne esperando para apodrecer. Ou, neste caso, para vomitar em nossa própria comida antes de comê-la.

Análise técnica: sedução visual, repulsão calculada

Cinematografia da deterioração

Mark Irwin, diretor de fotografia, executa um ballet visual perverso ao documentar a transformação de Brundle. Ao contrário da claustrofobia gelada de “The Thing”, “A Mosca” nos apresenta espaços que parecem amplos mas são, na verdade, prisões. O loft industrial de Brundle, com seus computadores modernos e cápsulas de teleporte, não é um refúgio. É um matadouro limpo onde um homem se desfaz lentamente.

A câmera de Irwin é clínica em sua observação, quase científica em sua frieza. Cronenberg não desvia o olhar das atrocidades físicas e nem permite que nós o façamos. Quando Brundle arranca suas unhas ou perde os dentes, a câmera fica firme. É como um médico observando um caso intrigante de putrefação. É o equivalente cinematográfico de um estudante de medicina mantendo o almoço no estômago durante sua primeira autópsia.

Efeitos Especiais: o banquete grotesco

Chris Walas ganhou merecidamente o Oscar pelo trabalho que fez em “A Mosca”. Seus efeitos práticos competem com os de Rob Bottin em “The Thing”, mas também os complementam. Se Bottin mostrou o horror da transformação externa, Walas revela a agonia da transformação interna.

A cena em que Brundle vomita em um donut antes de comê-lo é emblemática. É nojenta, mas também fascinante por sua lógica alienígena. Como espectadores, somos colocados na posição de Veronica: incapazes de desviar o olhar, mesmo quando nosso instinto grita para fazê-lo. Há uma sensação quase voyeurística em ver a queda de Brundle. Cronenberg parece nos acusar de ter a mesma obsessão que seu protagonista.

A trilha do desespero

Howard Shore, colaborador frequente de Cronenberg, compôs uma trilha que complementa perfeitamente a narrativa visual. Diferente do minimalismo de Morricone em “The Thing”, Shore escolhe uma abordagem operática. Ele usa cordas dramáticas que lembram filmes de monstros clássicos e o romantismo trágico da história. É Bernard Herrmann encontrando Franz Waxman em um laboratório de pesquisa genética abandonado.

A música incha nos momentos de horror, não para sinalizar um susto barato, mas para sublinhar a tragédia da situação. Quando Brundle finalmente se torna “Brundlefly” por completo, a música não nos diz para ter medo – ela nos diz para chorar por ele.

Análise sociológica: o corpo político em decomposição

AIDS, Reagan e o horror do contágio

Lançado em 1986, “A Mosca” surge no auge da crise da AIDS. Durante o silêncio da administração Reagan, o filme se destaca. Ele pode ser visto como o mais poderoso sobre AIDS, embora nunca mencione a doença. A transformação de Brundle tem uma trajetória assustadora. Primeiro, ele sente “bem-estar” e acredita que a teleportação o “purificou”. Depois, sua condição física piora rapidamente. Ele se isola socialmente e, por fim, fica completamente desfigurado.

Quando Veronica sonha em ter uma larva gigante, Cronenberg reflete o medo da época. Ele lida com a transmissão vertical do HIV de mãe para filho, um pânico que dominou as manchetes. O filme mostra de forma clara o que a sociedade temia discutir. Ele aborda o corpo em traição, a “punição” por transgressões (sexuais ou científicas) e o isolamento dos infectados.

Ciência, arrogância e a hubris masculina

Se “The Thing” lida com a masculinidade em crise diante do desconhecido, “A Mosca” analisa a arrogância masculina ao brincar de Deus. Seth Brundle é o arquétipo do gênio científico cujo ego supera sua prudência. “A carne não entende de computadores”, ele lamenta tardiamente, depois que sua máquina ressignifica seus genes. É a versão tecnológica de Prometeu, Ícaro e Frankenstein – o homem punido por tentar transcender os limites impostos à humanidade.

O que torna Seth Brundle tão fascinante como protagonista é que ele é simultaneamente vítima e perpretador de sua própria tragédia. A sua obsessão com “mudança” – como teleportação ou fusão genética – mostra uma insegurança masculina. É o medo de ser insignificante, impotente ou esquecido. A mosca é só o catalisador para uma mudança que Brundle queria, mas sem saber. Ele desejava ser mais que humano, mesmo que isso o tornasse menos humano.

O horror do parto masculino

Cronenberg sempre foi obcecado com o corpo como local de horror, mas “A Mosca” representa seu exame mais sustentado da reprodução como fonte de terror. O filme tem muitas imagens de gestação e parto. As cápsulas de teleporte parecem úteros tecnológicos. Brundle “dá à luz” uma nova versão de si mesmo. Veronica vive uma gravidez literal. Há também o sonho da larva. Por fim, Brundle tenta se unir a Veronica e à criança não nascida, formando uma “família” grotesca.

Este é o horror patriarcal: o homem que tenta tomar o poder reprodutivo das mulheres. Ele é punido de forma monstruosa por isso. Quando Brundle, em sua última transformação, tenta forçar Veronica a se teletransportar para “purificar” seu feto, observamos o controle reprodutivo masculino levado ao extremo grotesco.

Impacto cultural: a metamorfose contínua

“A Mosca” é relevante não só como um clássico do horror corporal. Também é um documento cultural. Ele antecipa nossas preocupações atuais sobre modificação genética, transhumanismo e bioética. Antes de falarmos sobre CRISPR e edição de genes, Cronenberg já explorava as consequências de mexer com o código da vida.

O filme também estabeleceu uma linguagem visual para a deterioração física que influenciou incontáveis filmes posteriores. Toda representação moderna de metamorfose corporal horrenda, como “District 9” e “Black Swan”, deve muito à jornada grotesca de Brundle. Mas poucos ousaram ir tão longe quanto Cronenberg na deformação de seu protagonista enquanto mantinham nossa simpatia por ele.

Ao contrário de muitos filmes de horror que dependem do monstro como “outro”, “A Mosca” nos força a identificar com o monstro até o amargo fim. Não há conforto em otrerização aqui – o horror não vem de fora, mas de dentro. Esta é, talvez, a lição mais chocante do filme. A monstruosidade não é algo que podemos jogar fora. Ela vive dentro de todos nós, esperando para aparecer.

Conclusão: o pathos do monstro

“Por favor, me matem”. Este pedido final de Brundlefly encapsula o que torna “A Mosca” superior a tantos outros filmes de horror-ficção científica: seu núcleo trágico. Diferente da criatura de “The Thing”, que briga para sobreviver, Brundlefly tem um momento de clareza. Ele percebe que precisa morrer. Esta auto-consciência é o que resta de sua humanidade – a capacidade de entender sua própria monstruosidade.

O verdadeiro horror de “A Mosca” não está em suas cenas viscerais de transformação ou na ameaça que Brundlefly representa aos outros. Seth Brundle ainda vive dentro do monstro. Ele está ciente de sua degradação, mas não pode parar isso.

Em tempos de clones digitais e manipulação genética, Cronenberg nos alerta. A tecnologia que promete ajudar pode, na verdade, nos fazer perder nossa humanidade. Como a criatura em seus momentos finais, podemos nos encontrar pedindo por libertação de uma “melhorias” que revelam ser nossa danação.

“A ciência dramática” de Brundle provou ser profética. Na nossa busca por algo mais, podemos nos tornar irreconhecíveis. Não seremos homens com asas, mas insetos que sonham ser humanos, como diz o próprio filme. E essa, talvez, seja a mensagem mais perturbadora que Cronenberg poderia nos deixar.

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2 comments
  1. Cara, Cronenberg é um gênio do body horror. Em A Mosca ele faz a ciência virar tragédia pessoal — não é só sangue, é uma reflexão heavy sobre identidade, envelhecimento e até uma metáfora pra doença terminal (afinal, Goldblum se transforma num híbrido que lentamente vira algo irreconhecível)

  2. Mano, é aquele filme que a gente assiste só pra vomitar junto! 🤢 Mas, ó, não tem nada de skip pros efeitos: maquiagem visceral, transformações nojentas – um verdadeiro festival de ‘me segura que vai vir vômito’. Qual parte fez você quase largar a pipoca pra correr pro banheiro? E bora rir desse corpo gritando SOS!

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